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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Leia a entrevista:

*Fonte: Conjur.
ConJur — Como o senhor analisa a proliferação de escolas de Direito no país? Que consequência tem essa massa de brasileiros graduar-se em Direito, mas ser reprovada no Exame de Ordem?
João Grandino Rodas — Desde a era colonial, o Brasil sempre foi o país dos bacharéis — e mais precisamente, dos bacharéis em Direito. Ficou entranhada na cultura brasileira, em todas as classes sociais, a ideia de que a verdadeira progressão educacional de um filho ou de um neto estaria em se transformar naquilo que vulgarmente se chama de doutor. Em primeiro lugar é o doutor advogado, e existem outros, como o médico. O mais simples parece ser a advocacia, embora não seja o caso.

ConJur — Daí a proliferação de escolas de Direito?
João Grandino Rodas — Não foram só as escolas privadas que criaram mais vagas. As escolas públicas fizeram a mesma coisa para dar espaço aos excedentes. O advento das universidades particulares é, em princípio, benéfico. Assim como entre as universidades públicas existem grandes nuances, nas universidades e faculdades privadas existem mais ainda. Pejorativamente, no passado, se dizia que bastava lousa e saliva para se ter uma faculdade de Direito boa. Não é nada disso. O que se verifica hoje são msaid de mil faculdades de Direito, de todos os níveis, e, realmente alunos e alunas que não têm preparação básica. A falta de qualidade no ensino fundamental e médio tem piorado o ensino mesmo nas faculdades mais tradicionais do Brasil. É bobagem imaginar que esse problema só atinge a faixa das classes menos favorecidas que estão na escola pública. As escolas secundárias, fundamentais e médias, as melhores do Brasil, pioraram, mesmo as de São Paulo, e até aquelas de dedicação exclusiva.

ConJur — O senhor estava falando sobre o problema da educação básica e também da bacharelização no Brasil. O mestrado e o doutorado estão caminhando no mesmo sentido?
João Grandino Rodas — Na Universidade de São Paulo estamos fazendo mudanças para fazer com que as regras sejam mais estritas para obtenção do mestrado e do doutorado. O Brasil tem a tendência da relativização e isso não pode chegar, obviamente, às grandes universidades do país e muito menos à pós-graduação. A Faculdade de Direito do Largo São Francisco tem 460 vagas anuais, enquanto toda a escola de enfermagem da USP tem 80 anuais. Por isso que eu digo que não são só as faculdades privadas que caíram no pecado de expandir o curso de Direito. E daí nós temos esse fenômeno dos bacharéis que não passam no Exame de Ordem, mesmo não sendo a prova dificílima.

ConJur — Os Exames não são difíceis?
João Grandino Rodas — Não. As pessoas imaginam que o Exame é dracroniano e que por isso elas não passam, mas todos nós que temos um certo conhecimento verificamos que os Exames de Ordem não são algo impossível. Eles poderiam ser considerados pouco mais que primários.

ConJur — E eles são bem feitos?
João Grandino Rodas — Tenho visto por amostragem que não são coisas complicadas. As duas escolas que mais aprovaram, em São Paulo, são a Faculdade de Direito da USP e a da Unesp. Em uma escola como a USP, que se diz de ponta, como que passam só 63% dos alunos inscritos? Isso é um absurdo. Há uma falha na avaliação lá dentro. Quer dizer, é uma escola que tem os melhores professores, os melhores alunos e as melhores bibliotecas. O que está falhando certamente é avaliação, porque não é possível que quase 40% não passem em um Exame de Ordem que é, como eu disse, simples. A impressão que eu tenho é que o ensino primário, o ensino fundamental e o médio pioraram em todo o país.

ConJur — Mas será que não é preciso repensar o formato dessa prova? Se esses 40% não são aprovados pelo Exame da Ordem, será que não há algo errado com a própria avaliação?
João Grandino Rodas — Pode ser. Mas uma pessoa bem preparada, que teve os melhores professores e as melhores bibliotecas, se outras escolas com muito menos conseguiram passar no exame, deveriam ter passado pelo menos 90% deles.

ConJur — O Exame de Ordem é uma régua científica eficaz para aferir a qualidade das escolas?
João Grandino Rodas — Não. De maneira nenhuma. Não sou fã irreversível do Exame do Ordem. No entanto, na atual conjuntura, ela serve como uma porteira mínima. Nós temos um número grande de bacharéis em Direito que não sabem ler ou escrever.

ConJur — O provão do MEC poderia substituir o Exame de Ordem?
João Grandino Rodas — O provão do MEC talvez não examine questões práticas que a Ordem diz examinar. Seriam mais questões teóricas. Não tem sentido que em nome da República Federativa do Brasil se dê um diploma que é igual para todo mundo e que ateste que a pessoa tem conhecimentos básicos em uma matéria quando não tem. Claro que existem necessidades de universalização da educação, mas é universalização da educação, não a de um diploma. A pessoa se preocupa em entrar na escola. Nós temos, por exemplo, as classes menos favorecidas economicamente que estão chegando a faculdade, o que é muito positivo. Mas muitas vezes elas saem de lá, depois de um esforço, com quase nada. Houve uma ilusão absoluta.

ConJur — Se toda população brasileira tivesse o diploma de Direito, isso seria um problema?
João Grandino Rodas — Se fosse um diploma que tivesse um fundamento não, não seria. O problema é que as pessoas acabam recebendo o diploma sem ter uma condição mínima. Por exemplo, onde ficam os 40% de alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco que não passaram no exame?

ConJur — Provavelmente farão o exame seguinte.
João Grandino Rodas — Sim. Mas não se pode dizer: “Farão o Exame seguinte”. Isso significa que a escola tem que se corrigir em uma série de coisas, porque eles foram reprovados.

ConJur — Essa discussão passa um pouco pela vocação da universidade. A Faculdade de Direito deve preparar o aluno para o mercado de trabalho ou formar uma pessoa que ofereça algo melhor para a sociedade?
João Grandino Rodas — As duas coisas. Ninguém será muito bom no ofício se não tiver o mínimo do outro e vice-versa, ao mesmo tempo em que um pensador não poderá ser um bom pensador se não tiver um pouco da prática da questão.

ConJur — Então, não deveriam ser vistos com mais naturalidade os resultados das escolas onde as classes menos favorecidas economicamente estudam?
João Grandino Rodas — Nós sabemos que no âmbito do Direito os melhores alunos, em São Paulo, entram para a Faculdade de Direito São Francisco, para PUC, para o Mackenzie e para a Getúlio Vargas. Os melhores professores vão para lá. Depois, nós temos professores que entrariam para outras escolas, que ainda são tradicionais. E, finalmente, as escolas em que não possuem uma grande tradição ainda. São alunos que às vezes não sabem escrever direito, com todas as deficiências do ensino privado e do público ou, pior ainda, do ensino supletivo. A escola privada ainda tenta suprir essas lacunas. Este é um acompanhamento que as públicas não dão. Alguém que entra na Faculdade de Direito do Largo São Francisco com o português precário, vai sair com o português precário. Na outra geração, quem é que entrou na escola desse jeito? Os filhos dos imigrantes. Agora, de certa forma, estamos na geração dos migrantes internos.

ConJur — Há exemplos de ministros do Supremo que saíram de escolas particulares, como Eros Grau, formado pelo Mackenzie; o ministro Cezar Peluso, pela PUC de Santos; Ricardo Lewandowski, da Faculdade de Direito de São Bernardo. Ou seja, é injusto generalizar e atribuir que o ensino privado não tem qualidade.
João Grandino Rodas — Não. Mas isso eu nunca disse.

ConJur — O ensino público enfrenta problemas que o privado não tem. Um deles é o corporativismo dos professores, dos servidores, as greves. Isso não compromete o ensino público?
João Grandino Rodas — O corporativismo exacerbado impede que certas faculdades dentro de uma universidade possam se aperfeiçoar, já que elas são autônomas. Acabei de redigir um parágrafo para o Manual do Calouro [da Fuvest] e fiz questão de escrever um parágrafo dizendo que aquele que escolheu a Universidade de São Paulo deve olhar também a unidade e, dentro da unidade, quais são os 245 cursos oferecidos. Cada unidade, em razão da sua relativa autonomia, pode ser mais ou menos propensa a mudanças, a interdisciplinaridade e a verificar a importância da teoria aplicada à prática. Quer dizer, existe a USP, e dentro dela muitas USPs. É verdade que nas escolas públicas em geral existam lugares em que o grupo dominante não modifica o curso e não atualizam a grade de jeito nenhum.

ConJur — Qual é o perfil do bacharel que vai entrar no mercado e ser aceito?
João Grandino Rodas — Como toda profissão, precisa seguir uma base muito boa das generalidades e sair da graduação pelo menos tendo conhecimento de um segmento — não quero dizer especialização. É impossível que alguém saia tendo conhecimento de todas as esferas jurídicas. A Escola de Direito da FGV de São Paulo, que é diferente da do Rio, é uma experiência bem sucedida. Ela tem o desenho específico de uma escola de Direito dos Negócios. Eu acho válido, mas será que o aluno quando entra na escola já precisa saber que quer saber de Direito de Negócios? A Faculdade de Direito da USP tem um modelo interessante. Permite que o aluno escolha 40% das matérias e faça 60% de matérias fixas, que todos têm de estudar. Por exemplo, Teoria Geral do Processo, está nos 60%. Já Processos Especiais Criminais não está nos 60%. O advogado ideal é aquele que tenha a base toda, mas que não pode ter por impossibilidade todas as especificidades que possam ser dadas no âmbito da graduação. Não é uma especialização, mas cada um faz seu próprio currículo.

ConJur — A crise econômica nos Estados Unidos e na Europa associada ao esgotamento do mercado deles fez do Brasil um território atraente primeiro para empresas e agora para escritórios de advogados. Mas, em nome da globalização, há uma pressão para pular a fase da revalidação de diploma e o Exame de Ordem. Como enfrentar a situação?
João Grandino Rodas — Primeira coisa, isso se passa em primeiro momento pelo reconhecimento de diplomas. Esse é um problema importante, e no mundo globalizado não se pode mais ficar pensando que cada diploma só vale no seu Estado. Qualquer país que queira ascender a patamares importantes precisa regulamentar essa questão. E como os Estados Unidos fazem, e outros fazem, muitas vezes é uma regulamentação escrita. Não se pode pura e simplesmente fechar a porteira e deixar de pensar sobre isso. É necessário que haja um conjunto de regras para permitir que estrangeiros atuem no país. Nós sabemos que no Brasil a questão da regulamentação ainda é antiguíssima e muito antiquada. Muitas vezes, é tão longa a demora para conseguir cumprir todos os passos da regulamentação atual que seria melhor ter feito novamente o curso aqui no Brasil.

ConJur — Para os graduados em Direito, o Exame de Ordem continuaria sendo uma exigência?
João Grandino Rodas — Depende do modelo. Teria que ser um modelo com uma certa rapidez e que possibilite que as pessoas que conseguiram diploma lá fora possam conseguir aqui dentro. O mundo mudou e não há mais lugar para reserva de mercado.

ConJur — E como ficaria o mercado brasileiro da advocacia com a chegada de bancas estrangeiras?
João Grandino Rodas — Não tenho um conhecimento muito profundo dos escritórios estrangeiros em si. Acho que é importante pensar que se eles não chegarem de um jeito, chegarão de outro. Será que a forma proposta hoje é a melhor forma? Não seria melhor termos regras mais claras e permitir que cheguem pela porta da frente? É melhor regulamentar a entrada do mercado do que manter a reserva do mercado e na prática se ter uma série de entradas sub-reptícias.

ConJur — Como o senhor avalia a atuação e a efetividade de tribunais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional?
João Grandino Rodas — Considero o Tribunal Penal Internacional como o mais importante documento do século XX em Direito Internacional, depois da carta da Organização das Nações Unidas. Ninguém acreditava que ele entraria em vigor logo, mas entrou. Ele recebeu grande apoio das ONGs, desde sua formulação até conseguir as 60 ratificações e, quando não julga, abre-se a possibilidade de julgar. É uma criação muito bem feita, mas do jeito como ficou tem jurisdição apenas sobre alguns crimes. O TPI é, digamos assim, o maior golpe possível no que resta da soberania dos Estados, de longe. O Brasil mesmo teve que passar por vários problemas constitucionais para ratificar a sua criação.

ConJur — Mas há dificuldade de execução das decisões do TPI, não?
João Grandino Rodas — Sim, mas não importa. Em certos momentos essa dificuldade acaba.

ConJur — Quando?
João Grandino Rodas — Temos um caso muito antigo da Corte de Permanência e Justiça Internacional, o do Estreito de Corfu. Em 1946, dois destroyers britânicos colidiram com minas nas águas territoriais da República Popular da Albânia, no Canal Corfu. A Inglaterra entrou na corte contra o reino, por entender que ele era culpado. No fim, a Albânia foi condenada, mas nunca pagou. Depois, Mussolini invadiu terras albanesas. Pegou o ouro de lá e investiu em Roma. Mais tarde, quando a Inglaterra librou a região dos poderes de Mussolini, encontrou o ouro, mas não o devolveu. “Estou cobrando aquilo”, alegou. Qual a percentagem de decisões judiciais internas que não são cumpridas? O defeito na execução não é apenas internacional. E ainda há outro ponto: a questão da não executoriedade absoluta está cada vez ficando menor.

ConJur — Então, no caso do Tribunal Penal a dificuldade de execução acaba sendo muito maior e conta com a própria dificuldade do país em executar a sentença judicial?
João Grandino Rodas — Sim. Mas ela pode mudar e não existe certeza de que aquela inexecução vai permanecer. Há décadas vem acontecendo a crescente internacionalização das matérias. Quando a matéria é interna, os órgãos internacionais não podem entrar e os tribunais internacionais também não. No caso do Apartheid, por exemplo. Era a própria África do Sul julgando diferentemente brancos e negros, mas brancos e negros ambos cidadãos da África. O que dizia o embaixador da ONU na época? “Esse assunto não interessa. Nós não estamos falando de estrangeiro.” Hoje, uma questão de genocídio interno é um assunto internacional, que não prescreve nunca, e, portanto, os tribunais internacionais passam a ter competência no que antes não tinham.

ConJur — Professor, como o senhor analisa a decisão do Supremo no caso Battisti?
João Grandino Rodas — Olhando especificamente pelo lado dos tratados, se não existe um tratado de extradição entre Brasil e Itália, em que os países se comprometem a extraditar, não pode haver o repatriamento. No entanto, foi criada uma obrigação internacional de fazê-lo dentro daquelas regras. O Brasil pode até não cumprir essas regras, mas, na realidade, existe em princípio uma infringência internacional, que pode, em tese, ser cobrada em tribunais internacionais. Fala-se muito no Tribunal da Haia, que é um dos primeiros tribunais internacionais. Como ele não tem jurisdição obrigatória, o caso para chegar lá depende de duas coisas. O Estado aceita, no caso concreto, a jurisdição. Por exemplo, a Itália entraria contra o Brasil, perguntaria para o Brasil: “Você aceita?” “Não”. Então, acabou. “Você aceita?” “Sim. Vamos fazer.” Também pode acontecer de Itália e Brasil terem assinado uma cláusula facultativa no tratado que dê jurisdição obrigatória ao tribunal. Assim, o Tribunal da Haia precisa ultrapassar essa fase preliminar de identificação de jurisdição para chegar a examinar a questão em si. Normalmente os tratados de extradição são baseados na mutualidade.

ConJur — Quer dizer, a Itália pode não entregar o próximo?
João Grandino Rodas — Se ela não entregar, tudo bem. Ela pode considerar o tratado rescindido.

ConJur — Além de livre-docente em Direito Internacional e reitor da USP, o senhor é também presidente do Cedes [Centro de Estudos de Direito Econômico e Social]. Em maio, o Cedes organizou um seminário sobre Direito do Trabalho, onde foram discutidos temas como negociações, ponto eletrônico, evolução do Direito do Trabalho e terceirização. Por que a escolha por esse ramo do Direito?
João Grandino Rodas — Precisamos discutir coisas que ainda não são abordadas. Escolhemos o Direito do Trabalho porque ele se enquadra no perfil de social e econômico. Nós estamos preparando uma mesa sobre Direito Tributário, mas isso não significa que o Cedes vai se debruçar profundamente em pesquisas. O objetivo é justamente não estudar só a forma jurídica, mas estudar também as decorrências sociais tanto para empresa como para o consumidor e para o empregado. Os seminários enfocam vários aspectos. Em Direito do Trabalho procurou-se abordar as novas questões. Ali não é um lugar para estudar Direito do Trabalho. Quer dizer, o Cedes não pretende substituir o estudo do Direito do Trabalho. Nós estudamos problemas que tem a ligação justamente com aquela parte extrajurídica estrita, e que influi por isso nas pessoas jurídicas ou físicas.

ConJur — E o resultado dessas discussões vai resultar em propostas para o Legislativo?
João Grandino Rodas — Isso leva à discussão. Pelo menos é uma participação do Cedes em tentar trazer à tona um assunto que ficou adormecido por razões políticas, mas que são importantes porque influenciam diretamente na pessoa física, no caso do trabalhador, e na empresa jurídica, no caso das empresas de terceirização.

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