*Fonte: O Globo.
Cola na Cola, Paulo Ricardo e Francisco somam-se a outros presos portadores de doença mental que vivem à margem das estatísticas oficiais e da lei. Na teoria, a existência do transtorno mental e a consequente aplicação de uma medida de segurança a partir da absolvição pelo juiz impedem a permanência de loucos infratores nos presídios.
Levantamento inédito do GLOBO revela a extensão do universo de loucos nos presídios brasileiros — um grupo cuja existência parte da sociedade brasileira prefere ignorar. Pelo menos 800 pessoas absolvidas pela Justiça em razão de transtornos mentais e em cumprimento de medida de segurança estão detidas em presídios e cadeias públicas país afora.
A medida tem um prazo mínimo de um a três anos, é determinada pelo juiz responsável pelo processo — logo após a absolvição do acusado — e deve ser cumprida em hospitais de custódia, clínicas ou ambulatórios. Essas pessoas são consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, uma vez que a manifestação dos problemas psiquiátricos impediu a compreensão dos crimes, e deveriam estar em tratamento médico. Na prática, cumprem pena no cárcere.
A quantidade pode ser até três vezes maior: outros 1,7 mil brasileiros acusados de diferentes crimes já receberam indicação da Justiça de que podem ter transtornos mentais e aguardam, além de um laudo psiquiátrico, tratamento médico dentro de presídios, em casa ou nas ruas. Em alguns estados, como São Paulo, a espera numa fila dura mais de um ano. Em outros, o laudo nunca é elaborado.
O levantamento do GLOBO foi feito junto às secretarias de administração penitenciária, defensorias públicas e varas de execução penal nos estados, além de consultas a fontes nos Ministérios da Saúde e da Justiça. O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), alimentado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, registra a existência de 3,9 mil pessoas em cumprimento de medida de segurança, seja em internação ou em tratamento ambulatorial. Os doentes mentais nos presídios identificados pelo jornal não entram na conta.
Os números oficiais tratam dos 26 manicômios judiciários e alas de tratamento psiquiátrico — anexadas a presídios — ainda em funcionamento em 20 unidades da federação. Cabe a esses hospitais de custódia receber os loucos infratores submetidos a medidas de segurança de internação. O Infopen ignora as pessoas que cumprem a medida em prisões e até mesmo os inscritos em dois programas em Goiás e Minas Gerais que pregam a desinternação, como preconiza a Lei Antimanicomial de 2001. Somados os três universos — manicômios, presídios e programas de desinternação —, a quantidade de loucos infratores é de 8,1 mil, mais do que o dobro do que consta no Infopen.
— A situação mais grave envolvendo medidas de segurança é a dos detidos em presídios. A responsabilidade pela integridade física do preso é do Executivo e, pelo andamento do processo, da Justiça. A Lei de Tortura prevê responsabilização por ação e omissão. Não há qualquer justificativa para as prisões — afirma o juiz Luciano Losekann, auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário.
Para a produção de uma série de reportagens sobre o assunto, O GLOBO esteve em sete presídios, uma ala de tratamento psiquiátrico e um manicômio judiciário em São Luís, Teresina, Goiânia e Brasília. Nas três primeiras cidades, a equipe conseguiu entrar nas unidades prisionais na companhia de juízes e de um promotor de Justiça. Em Brasília, uma autorização judicial permitiu ter acesso às prisões.
A reportagem flagrou uma realidade de uso contumaz do crack, hipermedicação e inexistência de prontuários em Brasília; a existência de uma ala específica para presos com transtornos mentais num presídio de regime fechado em Goiânia, além de pessoas em cumprimento de medida de segurança misturadas com detentos comuns; e doentes mentais nos mesmos espaços de pacientes com hanseníase e aids no manicômio em Teresina. Em São Luís, pessoas com transtornos mentais estão presas sem qualquer perspectiva de decretação da medida de segurança. Não há laudos, exames ou psiquiatra: a única que atendia no complexo prisional deixou de ir ao trabalho porque está sem pagamento desde dezembro. Um rol de irregularidades que combinam com o “sistema medieval” descrito pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no final do ano passado.
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