Leia a *Fonte: e-mail recebido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
"Mais uma vez, a Ordem dos Advogados do Brasil ocupa esta Tribuna para se manifestar em nome da sociedade civil numa cerimônia de posse do Presidente e Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal. Devemos refletir este momento (e é o que faço agora) não como uma mera concessão protocolar, mas sim como uma demonstração do avanço e do respeito mútuo entre as nossas instituições.
A OAB comparece a esta tribuna, com muita honra, para dar voz à cidadania no espaço do Judiciário, um dos pilares sem o qual não sobrevive nenhum projeto de construção de nação democrática.
Digo "construção" porque sabemos todos que a democracia será sempre uma obra inacabada enquanto continuarmos a conviver com grupos que mancham a administração pública com práticas de corrupção; que abusam de poderes para violar direitos fundamentais; e que tentam transformar a aplicação da justiça em espetáculo pirotécnico, num vale tudo que acaba não valendo nada.
Ideologias do atraso que, infelizmente, teimam em resistir ao tempo, razão porque (reitero) o Judiciário está sempre a merecer nossa atenção redobrada, pois é um dos pilares indispensáveis para sustentar o edifício da dignidade humana.
Vossa Excelência à frente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, do qual a Ordem dos Advogados faz parte, teve uma importância crucial para, a partir de um diagnóstico interno fundado em números, aproximar o Judiciário da realidade do nosso País. Expressou-se com dignidade, nos autos e fora deles, quando necessário, com uma franqueza que se de um lado lhe custou críticas e incompreensões, de outro lhe granjeou admiração e respeito.
Neste País não se quebram algemas de séculos de autoritarismo sem pagar um preço, mas Vossa Excelência enfrentou todas as adversidades causadas pelas suas atitudes sem demonstrar temor e nem sequer preocupado em esperar o troco.
Sua maior contribuição, ao lado das inúmeras ações efetivas, dentre as quais destaco os chamados mutirões carcerários pelos quais traçou uma radiografia do inferno que é viver encarcerado e sem perspectiva de futuro, foi combater o voluntarismo judicial, os atalhos perigosos ainda arraigados em muitos setores da Justiça e que restringem direitos e reduzem qualquer cidadão à condição de suspeito de culpa até, ele próprio, provar a sua inocência.
O que se quis, e ainda se quer, por absurdo que pareça, é inserir o Brasil em um sistema panóptico, idealizado por Jeremy Bentham e descrito por Foucault: ou seja, todos vigiando todos, muito além do Grande Irmão de George Orwell.
Não são poucas as vozes defendendo que se instalem sistemas de vigilância eletrônica em gabinetes, repartições, escritórios - em cada rua, em cada esquina, em cada arbusto, se possível, transformando o cotidiano humano numa paródia de vida de inseto, na qual as provas são produzidas contra ele próprio.
Não existe outro sentimento, afora o da indignação, quando esse voluntarismo judicial atenta contra direitos fundamentais básicos e, por tabela, as prerrogativas dos advogados. Prerrogativas que, tenho o cuidado de destacar aqui, não são privilégios, mas sim direitos definidos por lei. E mais do que isso, direitos que não se restringem à pessoa do advogado ou advogada, pois alcançam o próprio usuário da Justiça, o cidadão, o jurisdicionado.
Enquanto isso, é triste constatar que ainda há alguns magistrados que não cumprem, como deviam, os seus deveres de morar nas Comarcas, para onde se dirigem em alguns dias da semana, mais parecendo mero visitantes. Há magistrados que não dispensam, como deviam, tratamento urbano aos advogados. Há magistrados que convidam advogados a se retirarem das salas de audiência. Há magistrados que só recebem advogados em horários preestabelecidos, inclusive com fichas de inscrição. Há magistrados que chegam atrasados às audiências. Há magistrados que não permitem que advogados retirem autos do cartório. Há magistrados que desconhecem o princípio constitucional da razoável duração do processo.
Tais procedimentos, devo ressaltar, não são generalizados, mas existem e é nosso dever denunciá-los, pois denigrem, afrontam, humilham e prejudicam de forma contundente o livre e sagrado exercício da defesa, em detrimento da atividade profissional e da cidadania. O abuso de autoridade cometido contra o advogado no exercício profissional é um atentado contra a própria Constituição Federal. Logo, quem descumpre prerrogativa profissional prevista em lei é criminoso, está cometendo crime de abuso de autoridade.
Vossa Excelência, Ministro Gilmar Mendes, tem o nosso reconhecimento por neutralizar boa parte do furor populista de uma polícia pirotécnica e de uma justiça "injusta e falha", e fortalecer o conceito da "justiça justa", aplicada a todos, indistintamente, com celeridade e eficiência, baseada nos preceitos do Estado democrático de Direito.
Sob seu comando, o Conselho Nacional de Justiça ganhou um ímpeto na forma e na prática, fiscalizando a administração da Justiça ao identificar o acervo de processos sem decisão e exigir o cumprimento das famosas "metas". Para além disso, atraiu debates que, se antes eram impossíveis no âmbito dos tribunais, em razão do natural distanciamento entre o julgador e os julgados, hoje são indispensáveis para envolver todos os segmentos da sociedade organizada. O debate em torno das liberdades individuais contra o Estado Policial; sobre a desumanidade que é o sistema carcerário e a necessidade de políticas de efetiva reinserção social, tudo sob uma ótica humanista, são exemplos candentes dessa transformação.
Claro está, e seria injusto se não o registrasse, Vossa Excelência contou com o apoio decisivo de seus pares, nobres membros desta Casa e dos eminentes Conselheiros do CNJ.
A partir dessa constatação, traço aqui uma linha de reflexão para lembrar que a lei é para todos, e segundo a Constituição todos são iguais perante ela. Quando me refiro a "todos", significa do topo da pirâmide até a sua base, pois somente a lei, quando observada em seus ritos e procedimentos, representa o antídoto contra qualquer prática de crime. Não importa que seja de um simples delito, passando pelo desrespeito à legislação eleitoral, até o mais sofisticado golpe de ataque ao erário público.
Em um Estado democrático de Direito, os Poderes interagem de forma independente e harmônica, sem interferir um no outro. São noções elementares que remontam nosso modelo Republicano e sobreviveram, graças a um Judiciário forte, às inúmeras aventuras golpistas de nossa história. Sempre que se buscou romper esse equilíbrio, tentando desqualificar decisões judiciais, evidenciava-se a marca dos governos arbitrários e discricionários.
Lembrando Rui Barbosa, nosso patrono, os tribunais não usam espadas. Os tribunais não dispõem do Tesouro. Os tribunais não escolhem deputados e senadores. Os tribunais não fazem ministros e não distribuem candidaturas. Não elegem presidentes. Os tribunais não comandam milícias, exércitos ou esquadras.
Os tribunais julgam. E é por medo dos tribunais que tremem os tiranos.
Não devemos esquecer que o nosso modelo político-institucional se deve, em grande parte, ao Judiciário, sobretudo ao Supremo Tribunal Federal. Por aqui foram discutidas e definidas as liberdades civis, o estabelecimento da jurisprudência, a reafirmação da inviolabilidade dos direitos constitucionais de reunião e da livre manifestação do pensamento. Nem sempre, é claro, com a devida compreensão dos governantes de plantão.
Foram inúmeras as pressões que Supremo Tribunal sofreu diante de sucessivos golpes de Estado e atos institucionais, do início da República até datas mais recentes.
Mas esta Corte sobreviveu para provar que a democracia não se restringe a uma técnica de organização e administração do Poder, completamente dissociada de fins e valores. A democracia se alimenta dos valores éticos e morais, da dinâmica das circunstâncias, das demandas sociais, das pressões e contrapressões, enfim, da cadeia que une os elos dos sistemas sociais, econômicos e políticos.
Senhoras e Senhores, o Judiciário, nessa moldura, é o bastião da cidadania. Não mais o Poder Moderador, mas sim o Poder Estabilizador, que promove o equilíbrio do Estado democrático. É também o Poder Garantidor da segurança jurídica, da liberdade ativa e da Constituição.
O Brasil precisa de um Judiciário independente e forte também para atender as demandas sociais. A nossa democracia, infelizmente, é carente de conteúdo social, pois não atende as necessidades essenciais do povo, que, afinal de contas, é o agente, o meio e o fim do desenvolvimento.
Essa ausência de conteúdo social se reflete nas estatísticas das desigualdades sociais. Relatório das Nações Unidas recentemente divulgado classifica o Brasil como um fiasco em matéria de saneamento básico nas áreas urbanas. No meio rural, um desastre. Em tempos de enchentes, uma catástrofe.
Ao ser exposta com frieza essa dura realidade, percebe-se que os camponeses de países como Sudão e Afeganistão, envolvidos em conflitos internos, possuem melhor acesso a saneamento do que no Brasil, oitava economia do mundo e septuagésima quinta (75ª) em desenvolvimento humano. São números divulgados pela imprensa em todo o mundo.
Igualmente no quesito segurança pública, vivemos uma espécie de guerra civil não declarada, em particular nos grandes centros urbanos, com assassinatos e outras práticas de violência que nos situam como o sexto país com a maior taxa de homicídios do mundo dentre noventa e um analisados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Mas não é só. Em seu discurso de posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a sensibilidade que lhe é característica, decorrente do profundo conhecimento de nossas mazelas sociais, identificou na incúria e na corrupção a origem da inversão de valores que leva a uma conseqüência imediata: a fome. Nada mais verdadeiro e triste, sendo impensável se continuar vivendo com a lógica das Escrituras de ‘Aos pobres é reservado o reino dos céus'. Agora, como defendia Josué de Castro, devemos pensar que aos pobres deve também ser reservado o reino da Terra, pois a Terra é para todos os homens e não só para um grupo de privilegiados.
Evoluímos, sim, mas ainda persistem os privilégios e com eles as anomalias que levam à descrença de que se pode mudar desviando o foco da corrupção.
Tomo como exemplo para a reflexão a postura de Governos que transformam grandes somas de dinheiro público em campanhas publicitárias cujo objetivo não é outro senão o da promoção particular. Um truque para manter-se na pole position da corrida eleitoral.
As injustiças diminuiriam se os recursos fossem corretamente aplicados. Agora mesmo o CNJ, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Poder Executivo Federal constituíram um grupo de trabalho para analisar as razões pelas quais deixaram de ser construídos 28 novos presídios quando milhões de reais já foram liberados.
São questões, diriam alguns, recorrentes nesta tribuna, mas importantes no momento em que o Brasil novamente se encontra diante do grande debate democrático das eleições. Passam-se os anos e continua adiada a necessária reforma política, indispensável para a moralização de práticas e costumes, para a densidade doutrinária dos partidos, para o aperfeiçoamento da sistemática eleitoral.
Seja na saúde, na educação, no trabalho e na segurança, continuamos sem um planejamento ordenado de nossas políticas de infra-estrutura social e econômica. Insistimos na improvisação, e de apagão em apagão alimentamos a ilusão de que no final tudo vai dar certo. Para alguns, talvez. Mas até quando seremos o país da apartação - dos poucos que têm de sobra e dos muitos que tudo falta?
A Ordem dos Advogados do Brasil traz essas considerações esperando interpretar o sentimento de parcela ponderável do pensamento nacional. Sentimento este, porém, que está longe de ser pessimista. Houve avanços em todos os setores e em especial nas políticas sociais, é claro, e, no tocante ao fortalecimento das instituições, eles são palpáveis.
Retiro novamente de Rui Barbosa o seguinte ensinamento: "A garantia da ordem constitucional, do equilíbrio constitucional, da liberdade constitucional, está neste templo da Justiça, neste inviolável sacrário da lei, onde a consciência jurídica do País tem a sua sede suprema, o seu refúgio inacessível, a sua expressão final".
Vossa Excelência assume a Presidência do Supremo Tribunal Federal em meio a essa revolução silenciosa (corrijo, é bem verdade, uma revolução às vezes ruidosa) que vem se processando no âmbito do Judiciário. Portanto, ainda não acabou.
O espírito de independência, encarnado por Vossa Excelência, se ajusta plenamente aos desafios da nova realidade nacional. Desafios de um Brasil que irá exigir do Judiciário uma atenção especial para as demandas em praticamente todos os campos da vida política e institucional.
Temos a convicção de que Vossa Excelência saberá exercer o cargo com competência, dignificando a Justiça, a cidadania, e a sua própria história. A estrada é longa, mas saiba que nela Vossa Excelência nunca estará sozinho. Há uma grande nação a acompanhá-lo.
Peço a Deus, Sr. Presidente, que o ilumine em sua missão, ao lado do Ministro Carlos Ayres Britto e dos demais membros desta Corte. Muito obrigado."