*Fonte: O Estado de S.Paulo.
Miguel Reale Júnior
*Advogado, Professor Titular da Faculdade de Direito da USP,
Membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça
Dentro de cinco dias me aposento como professor titular da Faculdade de Direito da USP, por força de compulsória ao chegar à sétima década de vida. Foram 45 anos de docência. É hora de olhar para a frente, a partir de como se desenrolou ao longo do tempo o ensino do Direito e em especial da realidade presente.
É antiga a reclamação de o ensino jurídico ser insatisfatório, em "crise permanente", termo em si contraditório. Até 40 ou 50 anos atrás, na expressão de José Garcez Ghirardi, aprendia-se na faculdade, e não pela faculdade, ou seja, o ambiente acadêmico, a convivência, por exemplo, no pátio da São Francisco, propiciava o interesse por assuntos vários, dentre os quais o Direito! Política, sociologia, História, literatura e economia eram campos de curiosidade intelectual suscitados nas conversas entre as aulas, nos bares, nas festas.
"Crise" no ensino do Direito já havia. A deficiência decorria do recurso a métodos expositivos, com análise circunscrita ao universo exclusivo da lei, tendo os professores, especialmente de faculdades privadas, pouca produção científica, muitos apenas profissionais do Direito, promotores, magistrados, advogados, alheios à carreira acadêmica.
O número reduzido de Faculdades de Direito até 1970 levava aos seus bancos alunos com bagagem de estudo fundamental e colegial de qualidade, facilitando a tarefa de fazer pensar o Direito, e não só assimilar manuais descritivos da letra da lei. Pode-se dizer que, se os cursos jurídicos não correspondiam a uma exigência de excelência, se sempre houve "crise" no ensino jurídico, agora, todavia, há um processo de degenerescência crescente.
O aprendizado na faculdade existente no passado com certeza não existe, infelizmente, nas atuais escolas de Direito. Hoje o "conhecimento" se faz por tiras, por sinopses ou resumos mínimos, sendo breve qualquer leitura e o refletir, uma raridade. De 40 anos para cá, a cada passo, o curso de Direito transformou-se em adestramento de massa, com alunos e professores despreparados, tornando-se as faculdades meras fontes arrecadadoras de mensalidades, voltadas antes para o lucro do que para a promoção de estudo aprofundado, na busca da criação de formandos de qualidade.
A situação hoje do estudo do Direito no Brasil confronta, também, com propostas formuladas mais recentemente. Em 2004 o Conselho Nacional de Educação baixou resolução na qual destacava que deveria o ensino privilegiar a pesquisa e a prestação de serviço à comunidade como necessários prolongamentos da atividade de didática, com vista à iniciação científica, mas sem perder a perspectiva de ser o curso de Direito um aprendizado de humanidades e de criação de espírito crítico. Considerava-se, então, que cabia "assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania". Que belo texto!
Mas essa boa intenção desmoronou com a criação incessante de Faculdades de Direito, principalmente na última década. No ano passado o Conselho Federal da OAB conseguiu um acordo para estancar temporariamente a autorização de mais faculdades. Passa-se agora à tentativa de estabelecer um novo marco regulatório do ensino do Direito.
A Associação Brasileira de Ensino do Direito denunciou recentemente a costumeira existência de salas de aula superlotadas, pagamento vil aos professores, no sistema hora-aula, com perda da dignidade da docência superior. Hoje, como ressaltado, não mais se tem o aprendizado na faculdade, prevalecendo a comercialização do ensino, com a admissão indiscriminada de alunos despreparados, vindos do secundário sem o costume de pensar, ler, escrever, criticar, questionar.
Diante da massificação do ensino jurídico, impõem-se algumas medidas para o correto aproveitamento do curso por estes alunos merecedores de mais atenção, vítimas e não culpados da má formação que tiveram. Sugiro, então, a adoção das seguintes linhas:
Aulas diárias de Português, Lógica e História das Ideias e Inglês no primeiro ano, ao lado das disciplinas também fundamentais, como Introdução à Ciência do Direito, Sociologia, Ciência Política.
Efetividade da exigência de carreira universitária para os professores, com realização de concursos de ingresso à docência, tendo por requisito a titulação reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC).
Ensino participativo, com leitura e discussão de textos e estudos de casos, para incentivar a reflexão sobre o Direito, para que o aluno seja um dos artífices do próprio conhecimento. Para tanto o aluno precisa querer não apenas um diploma, mas conhecer e discutir o Direito. O professor não deve tão só saber uma aula a mais que o aluno, cumpre-lhe pesquisar, confrontar ideias, debater com os alunos os textos que escolhe para leitura. As classes devem ser, no máximo, de 50 alunos.
Fechamento das instituições que não correspondam à avaliação do MEC.
A criação de mais faculdades não deve sequer ser pensada. Com mais de 1.200 faculdades e de 600 mil alunos, não há massa crítica suficiente para, com seriedade, preencher a função de professor capacitado. Os resultados do Exame de Ordem, com 80% ou mais de reprovação, mostram a precariedade do ensino do Direito.
Olhar para a frente significa esperança: acreditar em melhoria do ensino do Direito, acima das condições objetivas, com avanços a partir do marco regulatório em elaboração.
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